Este é o meu segundo conto infantil que escrevi para um concurso.
Espero que vos agrade!
Espero que vos agrade!
“A palavra Palavrinha”
uma aventura no reino das regras e das rimas
Há palavras e palavras, mas a de que vos vou falar é uma muito especial: é a palavra
Palavrinha. Conheci-a quando tinha mais ou menos a vossa idade. Era filha de uns
vizinhos importantes aqui da rua: os Números. O seu pai era contabilista e a sua mãe tinha
um trabalho importante nas Finanças do Estado. Via-os sempre de manhã correndo para o
trabalho, que era pontualmente das nove às cinco. Todos os dias às nove passavam para
lá, apressados enquanto refilavam porque estavam atrasados para o serviço... E depois às
cinco passavam para cá, com o seu carrinho de topo de gama cheio com uma infindável
lista de compras.
Eram boa gente, mas contavam sempre tudo, e contavam a tudo e a todos, especialmente
que nunca tinham tempo para nada e que precisavam de trabalhar mais para poderem
juntar ainda mais qualquer coisa, não fosse um dia faltar-lhes alguma coisa...
Mas numa manhã, antes mesmo do galo cantar, pé ante pé, mas ainda que mais
apressados do que era costume, saíram de casa, escapando sem que ninguém os visse por
entre o nevoeiro cerrado.
E o tempo passou e os Números nunca mais voltavam... E o tempo avançou e até já a Lua já
tinha corrido metade do céu e não havia meio dos vizinhos aparecerem! Todo o bairro
estava preocupado e eu até adormeci à janela, na esperança de os ver chegar.
E foi então, que num sobressalto já na manhã do dia seguinte precisamente às nove horas
que surpreenderam a rua contando em alto e bom tom, num megafone montado por cima
do carro, que a família estava a aumentar. Sim um novo dígito vinha a caminho! E então
houve feriado e música que se ouvia para lá do fim do bairro, e no fim o Senhor Número
fez um discurso: “É pois com grande orgulho que vos apresento a minha filha Palavrinha!
Palavra que vai ser um orgulho e menina de cumprir com os seus compromissos”.
E chegou então o momento tão aguardado. Palavrinha apareceu timidamente por entre as
pernas dos seus pais orgulhosos, enquanto olhava à volta com os seus olhos enormes, em
que cabia toda aquela visão, com toda a vizinhança que aguardava a sua primeira
palavrinha. O silêncio era tanto que se ouviu os seus pulmões encherem de espanto. E
abrindo os braços soltou um profundo “Siiiiim!”
E nesse momento, foguetes e serpentinas soltaram-se pelo ar! E lá bem no alto, arrancou o
baile! *Bumbumbum* Mas então a Palavrinha olhou à sua volta, estranhando todo aquele
alvoroço, e disse repetidamente “N.. Na.. nã, não.. Não! ” E alto e para o baile, ouviu-se um
disco riscar e até o galo se engasgou de tal maneira, que mais parecia um pato a grasnar...
‘Crááácráá’! Os vizinhos pararam a dança e olhando uns para os outros interrogavam-se
sem dizer nada. E então a Palavrinha continuou “Não, não.. cão pão grão mão pião peão...”
E finalmente, olhando para os seus pais que já estavam a ficar preocupados, disse
“Mamã!” E eles então ficaram com uma lágrima caindo pelo olhar e ouviu-se uma enorme
salva de palmas! Abraçando-a, os Números respiravam de alívio e somavam alegrias! Bem,
multiplicavam e dividiam, que esta menina não era de resultado certo com o rigor da
restante família, já que fazia uns números inspirados... mas muito inesperados! Mas bom,
o baile seguiu noite fora. E fez-se festa de arromba!
Até tão tarde foi o baile, que no dia seguinte eram nove horas e um em ponto, e todo o
bairro ainda dormia. Todo o bairro não. Palavrinha estava acordada e olhava à sua volta
enquanto gatinhava. E ia dando nomes ao que via “Flor, sabor, calor” apontando em
diferentes direções e dava asas ao que sentia. O que ela mais gostava era de ser livre e de
rimar, tanto que até já sabia que queria ser poetisa. E achava que já sabia tudo! Trauteava
primeiro o sufixo e lá ia arriscando as suas primeiras rimas juntando palavras “ão ão
sabão, ão ão balão, avião ão, camião coff coff”.
Mas tal como a fábula que nasce da ação do verbo, então por ali passou um senhor que
nunca tinha por ali passado. “Olá linda menina! Porque estás aqui a falar sozinha.” “Os
meus pais deixaram-me aqui sozinha” “E eles onde estão?”, perguntou ele. “O que tem a
ver com isso? Fugiram de casa...”, disse ela mentindo. “Mas a minha mãe dizia-me sempre
para não falar com pessoas estranhas. E você é um bocado esquisito não acha?”,
respondeu irritada. “Não devias estar na escola?”, continuou o senhor. “Já sei ler e contar e
estou a escrever poemas. Chega-me bem. E o que tem você a ver que haver com isso? Não
já disso isso!?” E sorrindo, disse-lhe o senhor corrigindo-a: ”Sim, e já vi que terei de
ensinar-te talento... e tento na língua!” Palavrinha mostrou-lhe zangada a sua língua, antes
de se afastar dançando por entre as novas palavras que ia inventando.
Continuou caminho fora, mas já estava com sede por causa de tanta letra, e com a barriga
cheia de palavras novas, decidiu voltar a casa. Porém, quando chegou à porta voltou a ver
o misterioso senhor, que entretanto falava com a Senhora Número! “Palavrinha, vem aqui
para te apresentar o professor Regras! Vai ser o teu novo professor!”, suspirou a senhora
Número, impressionada com o brilho da batina do senhor.
“Já nos conhecemos hoje de manhã. E já vi que temos muito a aprender um com o outro.
Sabes quando tinha a tua idade li de uma assentada três dicionários de línguas diferentes,
duas enciclopédias, uma inglesa e outra francesa, uma gramática em latim e o livro de
instruções da minha calculadora que estava em alemão! Este ano estou a aprender
japonês, e para o ano esperanto, porque a fome de sabedoria nunca se esgota!”.
“Impressionante”, disse radiante a senhora Número, já que queria que a filha se tornasse
numa Senhora de palavra e cheia de Números na vida. “Secante”, disse a menina
Palavrinha. “Deixa-te dessas letras menina”, corrigiu prontamente a senhora Número. “As
letras já as sei todas de cor. E os números que me estão sempre a impingir. O que vou
aprender para a escola?” “Que os números e as palavras não falam assim!” ”Bom,”
interrompeu o professor, “a escola começa amanhã! Espero por ti às 9 e 15 em ponto!”,
disse despedindo-se. “Assim será! Tem a minha palavra!”, disse a senhora Número.
E assim começou a Aventura no Reino das Regras
Palavrinha chegou pontualmente às 9 e dezassete. O professor Regras olhou para o relógio
e não gostou daquele atraso, mas como era o primeiro dia de aulas desculpou-a. Eu disselhe
“Ó..ó..olá”. Mas ela nem ligou, enquanto tirava os livros da mochila.
“Vamos começar pela gramática do português. A gramática é o sistema de normas que dão
sentido à nossa língua. É constituída por sintaxe, morfologia e fonética” E continuou o
professor: “Sintaxe é o estudo das regras que regem a construção das frases. Substantivos,
adjectivos, verbos, artigos, advérbios, pronomes, conjuções, interjeições, preposições,
enfim todas as chamadas classes de palavras constituem a morfologia. E a fonética é o
conjunto de sons que articulam cada língua.”. ‘Mas que língua é que ele está mesmo a
falar? Não percebi nada’, pensava Palavrinha. E pegou no dicionário, pesquisando
ferozmente o significado de cada uma daquelas palavras, que desconhecia.
“Agora vamos à matemática”, interrompeu o professor. E passou logo o primeiro trabalho:
a tabuada do 2! A tabuada dos dois para Palavrinha era fácil, porque andava sempre aos
saltos na rua e dava passos de dois em dois de cada vez. Eu levantei o braço, mas ela disse
logo alto ”Eu sei, eu sei! Dois passos e dois passinhos são quatro e mais dois vai em seis e
depois são oito e seguem-se dez e depois é uma caminhada por aí fora”! “Muito bem
menina! E a tabuada do três?” Essa agora, a dos três... Palavrinha não tinha ideia e coçou a
cabeça atrapalhada. “Três mais três, são um trinta e três, depois vem o vinte e três e mais
não sei que é a conta que Deus fez..”
A turma riu-se numa gargalhada, e eu que sou gago, disse então: “Trê... três três vezes um
três. Trê..três vezes dois, sei.. seis. Vezes três nove.. ove.” O Pintas, o parvinho da turma
pôs-se a gozar comigo “Ou.. ou.. ovo uma ova..!” E o Trincas que se sentava ao lado dele
atirou-me uma bola de papel à cabeça. Eu, chateado com tudo aquilo, comecei a tremer
com os meus tiques nervosos, batendo com os dedos sobre a mesa.
Acho que foi nessa altura que Palavrinha reparou pela primeira vez em mim, sentado ao
lado dela, chateada pela vergonha que a tinha feito passar. “Deves ter a mania que és
es..espertalhão...”, resmungou entre dentes. Eu não liguei, mas o professor puxando-nos
pelos anexos, com que também nos tinha escutado, chamou-nos aos três, ao gabinete do
Doutor Ideias!
Palavrinha foi a primeira a entrar, e educadamente, como lhe ensinara a Senhora Número,
pediu licença, e sentou-se num cadeirão em frente da enorme secretária, cheia de
papeladas do doutor. O Doutor Ideias perguntou-lhe o que se passava. “Nada”, disse ela. E
ele insistiu nada dizendo. E ela respondeu: “Nada que me deixe animada. É só regras e
contra regras!” O Doutor Ideias olhou-a, novamente sem nada dizer. “Eu já não sei mais
que tabuadas inventa esta gente! Já inventaram até a do trinta e um!”. Preocupado por vêla
assim, o Doutor Ideias elogiou a sua tabuada dos passinhos de dois em dois, mas disselhe
que voltasse para a aula e que não fosse mal educada para os colegas. E recomendou
que quando fosse para casa tomasse uma dose de juízo e outra de descanso.
Quando Palavrinha saiu, eu estava a lanchar no intervalo para recreio. O Pintas vinha
chateado com a conversa do Doutor ideias, já que o colocara de castigo a fazer tabuadas, e
ao ver-me passar fez-me uma rasteira. O Trincas, que estava com ele, pôs-se a rir
desalmadamente, vendo-me estendido no chão. E então comecei a fazer barulhinhos com
a boca, já que a tinha cheia de comida e achava que os podia impressionar com aquilo:
‘Tchhec Tchhec.. Frsst Frssszz... Nhec nhec...’ E eles riram-se ainda mais... Então Palavrinha
correu na minha direção e enfrentou-os, com um berro tão alto, mas tão alto, que fez
abafou o som da campainha de entrada “JÁ CHEGA!!!”. Depois aproximou-se de mim,
ajudou-me a levantar e disse-me “Têm piada esses sons que fazes...! Mas vá anda, vamos
para a aula...”.
A aula chegou ao fim num instante. E a semana também estava quase a acabar. Era sexta
feira e o Professor Regras escreveu no quadro “TPF - Trabalho para Férias”. E voltando-se
olhou para nós os dois ao mesmo tempo, disse: “Como se deram tão bem na matemática,
vão ter agora um trabalho em grupo para as férias. Vão entrevistar alguém que admirem,
e depois apresentam o trabalho na aula. Conta para avaliação!”
Ficámos por um instante a olhar um para o outro sem saber muito bem o que fazer. É que
Palavrinha só conhecia os pais, e como sabia que só pensavam em números e ela só
gostava era de letras, não os queria entrevistar. Mas sinceramente, não se lembrava de
mais ninguém... E fez-se um silêncio esquisito.
E eu lembrei-me então: “Há..á há um artista que ad..add..miro, mas que mora no País das
Rimas...imas, e chamam-lhe Verso Li.. livre, e é Mé.. mestre de ri..ri..rimas e ba... batidas.
Faz beats com.. com.. com a língua e destrava línguas só.. só com a imagi..ginação”.
“Também gostava de aprender rimas e com elas fazer obras primas!” disse Palavrinha.
“Mas o País das Rimas é no ou.. outro lado do riri..rio, que é quaqua..quase para lá do óó
Oceano que nos se se separa do outra lado do mu.. mundo”, respondi-lhe a medo. “Vamos
lá! Partimos às descobertas e voltamos poetas!”, arriscou ela.
E fizemo-nos ao caminho. Na mochila levei almoço, uma garrafa de água e um gravador
para entrevistar o Verso Livre, Mestre das rimas e batidas. Pelo caminho aproveitei para
testá-lo e fui fazendo algumas gravações.
Apanhámos um elétrico, que andava depressa e fazia faíscas em cada curva, e ‘fzzztt fzzztt
triim triimmm’ como era bonito o som que fazia. Vinha cheio de turistas, e todos pareciam
entender-se cada um na sua língua: “Holla, ça va? schöner Tag! نعم†Molto bello! さような”.
Não se percebia nada, mas como gravei aquelas palavras com o meu gravador, pensei que
talvez alguém me pudesse explicar um dia o que diziam.
Depois apanhámos um autocarro que vinha cheio até ao tecto de pessoas a caminho do
trabalho, e que refilavam por toda e qualquer razão. ‘Sempre atrasados estes autocarros!’
‘A culpa é do governo!’ ‘Não, não a culpa é do Benfica!’, foram, entre berros e gargalhadas,
alguns dos desabafos que ficaram para mais tarde recordar.
Saímos então num pulo do autocarro e aterrámos em frente do Senhor Pica da bilheteira
dos barcos. Parecia um verdadeiro monossílabo, sempre a dizer a mesma coisa: “passe,
bilhete, passe, bilhete”. E picado o bilhete, por fim nos sentámos no barco, e cá nos
fizemos rumo à outra margem. Por entre as ondas que ondulavam com o barco ‘Pssxx
Schuaa Pssxx Schuaa..’ E disse por fim a sirene ‘Tuuuu Tuuuu’, anunciando a chegada a
porto seguro.
E assim começou a Aventura no Reino das Rimas
Apanhámos o metro que mais parecia um comboio ‘Cuidado com o degrau! Cuidado com o
degrau! Próxima estação País das Rimas’ “Che.. chegámos!” Mas à nossa espera apenas
havia um enorme descampado... Começámos a andar, com o Sol do meio dia a dizer-nos
que devíamos parar para almoçar. Foi o que fizemos, abrigados debaixo de uma árvore
alta. E ouvimos os grilos e as cigarras, que faziam uma chinfrineira sem rival. ‘Griii griii...
fzzz fzzzz...’, tentei imitá-los sem grande sucesso. “Parecias mesmo um grilo”, disse-me
Palavrinha. Fiquei mais animado. E seguimos caminho.
Havia terrenos sem fim, jardins e campos semeados. Passámos então por uns prédios
altos e por outros mais baixos. E atravessámos um campo com umas tabelas onde uns
rapazes, quase do tamanho dos prédios, jogavam basquetebol. Um deles ao ver-nos
aproximar jogou uma bola na nossa direção. “Devem estar perdidos, para entrarem assim
no nosso campo sem pedirem autorização!“. Segurei Palavrinha pelas mãos que tremiam.
“Querem jogar ou vão ficar-nos com a bola?”, insistiu outro rapaz, dizendo um nome feio
pelo meio, daqueles que não se podem repetir. Assustado puxei Palavrinha pelo braço,
mas “Sabem onde mora o Verso Livre?”, lançou logo ela corajosa, acertando em cheio no
cesto. “Topaste o shot?” “Tché a dama tá a perguntar pelo mestre.” “Afinal sabem bem o
que procuram!” “É no alto da Colina atrás do Sol. Sejam bem vindos, mano!”, disseram
todos eles cheios de gírias. E seguimos caminho, olhando ao longe a colina que se
aproximava a cada passo nosso.
Chegámos finalmente à porta do Mestre das Rimas. Era assim um prédio para o alto e que
abanava à passagem dos comboios. As janelas não tinham vidros, mas nelas ondulavam
leves cortinados que cortados pelo vento, tilintavam suavemente. As paredes estavam
todas escritas com palavras gordas e coloridas, que rimavam com todo aquele ambiente
deserto e suburbano: Chullage, Capicua, Sam the Kid, Valete, Da Weasel, foram alguns dos
que consegui ler entre traços, gatafunhos e pinturas, na maioria feias e sujas, mas algumas
delas também eram bonitas e expressivas.
Mas tudo aquilo tinha um ar abandonado, e eu cada vez mais assustado decidi voltar atrás.
“Enfim agora vamos até ao fim, ó cobardolas!”, disse-me Palavrinha antes de bater à porta.
Ouviram-se pombos, pardais e corujas fugindo pelas janelas, mas nada. E ela bateu
novamente à porta e bateu e bateu, mas ninguém respondeu. “Vamos embora! Que
desilusão.” “Vamos es..escrever uma ca..carta ao professor a explicar tu.. tudo isto.” E
olhando-nos como a uma folha em branco, pensávamos: O que iriamos escrever?
Foi então que a bola de basquetebol veio novamente na nossa direção. Um dos jovens
basquetebolistas olhava-nos desafiante. Aproximando-se ajeitou o seu chapéu da NBA e
disparou: “Eu não sou mestre | sou aprendiz | Mas ponho-vos em teste | Não torçam o
nariz... | Sou um gajo cool | Só me falta a pool... | Não jogo low, | Busco sempre um flow. | E
tu como é vizinho, sabes rimar ou vais ficar a ver-me aqui a armar o circo sozinho?”
Agora foi Palavrinha que me segurou, letra por letra, temendo o desafio. Então o gravador
caiu ao chão e começou a tocar sozinho. Eu comecei a gaguejar como era costume, mas os
ruídos da cidade na gravação deram o mote e comecei a imitá-los ‘Gzz gzzz... fftt ftt..ffftt
txtxxtchh’. Sons estranhos começaram-me a sair da garganta e comecei a improvisar uma
batida, usando a minha gaguez como uma caixa de ritmos. Palavrinha olhava-me
estupefacta. Os beats saiam cada vez mais fluídos ‘ff..fzz tt..ttss ff..fzzz bebeat..beat’ e
palavra a palavra, Palavrinha começou a entrar na minha linha. “Como é mano, estás a ver
este fulano? | Deu-nos a mão e agora joga-nos ao chão | Como é? Acertei no cesto e agora
dizes que não presto?”
E no combate de rimas o rapaz continuou: “Nós somos um gangue cheio de gírias | Não
temos tristeza nem alegrias | Só temos realidade e muita saudade | Onde agora vivo é
onde sobrevivo | A minha casa é a rua | E no dia a dia vivo iluminado | com a luz da Lua |
que me segue para todo o lado”.
Tive então de dar o meu beat mais inspirado, e Palavrinha respondendo à altura disparou:
“Nós viemos da cidade | é essa a nossa verdade | somos feitos de letras | para nós o resto
são só tretas! | O nosso número são as palavras | e as frases e coisas raras | fazemos rimas
como obras primas | mas também com tabuadas | com que contamos sempre de mãos
dadas”. E então o gravador que continuava a tocar interrompeu-os, repetindo a conversa
do elétrico. “‘Holla (Olá)!’ ‘Good morning!’ (‘Gud mórningue!’) ‘ça va?’ ( ‘sá vá?) ‘schöner
Tag!’ (‘xôner tágue’!) ‘ نعم†’ (‘nem’) Molto bello! (‘mólto belo’) ‘さようなら’ (Sayonara).”
“Gravaste isto para quê se não percebemos nada”, disse Palavrinha, chateada por ter sido
interrompida. O rapaz escutando com atenção, disse: “ ‘Olá bom dia! Tudo bem? Bonito
dia. Sim. Muito belo! Adeus!’ É isso o que diz aí a vossa gravação. São línguas de meio
mundo. O resto do planeta é muito grande e tem muitas outras mais, mas todas têm muita
gramática em comum.” Palavrinha até ficou meio tonta ao ouvir isto, lembrando-se das
aulas de português. “O Professor Regras tentou ensinar-nos isso, mas não percebemos
nada dessas regras de gramática”.
”Eu gosto de transgredir as regras, mas primeiro tive de as aprender, para depois criar
com mais responsabilidade e autoridade. A gramática aprende-se num instante ou dois, e
é mais ou menos assim: os verbos dão movimento aos nomes, que são os substantivos. Já
os adjetivos dão-lhes cor e sensações. Tal como curiosamente, os advérbios modificam os
verbos ou os adjetivos. Os artigos dizem se és um rapaz ou uma menina ou se afinal um
grupo, e o pronome aparece sempre a dar a cara no lugar de um substantivo. Já as
conjunções fazem pontes entre as frases, as preposições ligam dois elementos com uma
relação na frase e as interjeições expressam um sentimento como uma exclamação no fim.
A gramática é a base, o dicionário é a fonte, a imaginação o limite.”
E lançando a bola ao cesto continuou: “Como já têm o gosto e o estilo, só posso dizer-vos
para estudarem e praticarem muito. Depois o ritmo e o flow dos versos viajam dentro de
vocês. É por isso que estão na escola, para aprenderem mais e melhor. E um dia fazerem
um poema da vossa vida, para viajarem depois por entre todas as línguas do mundo. Mas
também fizeram bem em sair da vossa cidade, em vir conhecer outros sítios e outras
realidades. Estamos todos no mesmo planeta, só que em páginas diferentes do mesmo
livro.“
Eu olhava-o com admiração. Foi então que percebi quem ele era. ”Sim, eu sou o Verso
Livre, mestre das rimas e vocês juntos fazem um lindo poema. Foi um prazer trocar umas
palavras e umas bolas convosco! O meu propósito aqui está cumprido! Sayonara! Au
revoir! Adeus!” E tal como apareceu, ofereceu-nos aa bola de basquetebol, e desapareceu
por entre os prédios mais altos ao fundo da rua.
Voltei então com Palavrinha para a nossa rua, com a certeza de termos vivido uma
aventura especial e irrepetível. Aceitámos o desafio e chegámos exaustos a casa com uma
história enorme para contar. Atravessámos para a outra margem e pisámos por terras por
onde podemos nunca mais voltar. Mas juntámos duas cidades com os nossos ritmos e
rimas, e ganhámos novos limites dentro de nós, cumprindo com a compromisso da
palavra e do dever cumprido, que nos levou a viajar lado a lado ao encontro da inspiração.
E voltámos no dia seguinte à sala de aula, chegando exatamente um minuto antes das
nove e quinze. Montámos o gravador e ajeitámos a luz da sala. O professor Regras chegou à
mesma hora de sempre e admirado pela nossa presença tão pontual, sentou-se no lugar
do costume e ajeitou os óculos, para melhor ver a nossa apresentação. “Vamos lá ver
então o que nos prepararam estes artistas.”, disse o Professor abanando a cabeça.
“O meu nome é Palavrinha” ”Eu sou o Beat-Beat.” “E nós somos os Poemas com Rima!”
Palavrinha abriu as hostilidades: “Esta é a história de um rapaz que busca a sua harmonia
em frases simples e rimas soltas. O seu nome é Verso Livre e mora no outro lado do
campo. Fomos ao encontro dele e ele ensinou-nos a gramática da vida.” Ajeitei a pala do
meu boné, carreguei no play do gravador e inspirado nas ondas do rio ‘tssc tssc tssc’, no
som do elétrico ‘chuiim chuiim triim triim’, e no ‘chuaa’ da bola a entrar no cesto, liberteime
da minha gaguez de sempre, que desta vez não me fez hesitar nem um momento. E
comecei um beat feito com a minha caixa de ritmos: a boca e os meus pulmões. ‘Tuu tss
tuu tss tuuu...’
Embalando-se pela minha melodia como Beat-Beat, Palavrinha começou a debitar a sua
poesia: “Na gramática da vida | A sintaxe da frase, | A morfologia da palavra, | O beat do
fonema, | Todos eles colaboram para o mesmo poema. | Às vezes é preciso ser | A
gramática da vida | Que mora ao longo do rio | unindo as margens | através de um fio! | A
gramática da vida | é cheia de normas | mas é a exceção | feita de rimas e prosas | Que faz
bater o coração! | Às vezes é preciso ser | O substantivo que faz as viagens | O verbo em
movimento | Ou o advérbio que os altera! | Superando os objectivos, | Ser como os
adjetivos | que definem as paisagens | Com que escrevemos sentimento! | Às vezes é
preciso ser | Os artigos que trocamos de mão em mão | fazendo uma multidão! | Ser como
as conjunções | que fazem pontes na frase | ou como as preposições | que fazem a relação
| dos elementos na oração! | dando a cara | não somos um pronome | que surge sempre no
lugar de um nome | somos interjeições | expressamos um sentimento | com uma
exclamação no fim!”.
“WOW!” Disse a turma num suspuro e o professor Regras estava estupefacto ao ouvir-nos
improvisar! A verdade é que nunca tinha assistido nas suas aulas a um trabalho tão
cativante! “Brilhante”, disse depois de aplaudir com toda a restante turminha! Até o Pintas
e o Trincas estavam de boca aberta, ficaram ainda mais roídos de inveja por termos tido a
melhor nota da turma.
Depois das aulas, jogámos os dois pelo caminho com a bola do Mestre da Rima, rodando
nas nossas mãos o nosso destino, enquanto improvisávamos rimas cada vez mais
inspiradas e inspiradoras, que passaram a fazer parte dos nossos números de letras e
beats.
E então, como eram cinco horas chegaram os Números, que estavam eufóricos, já que
gostavam de números redondos e já tinham ouvido que tivéramos nota máxima! No seu
carrinho topo de gama o senhor Número trazia-nos um presente, um microfone dourado
com que gravámos o nosso primeiro álbum. E este nosso “Número 1” foi um sucesso tal no
nosso bairro, que chegámos ao primeiro lugar da rádio Mais Doce!
E depois veio o segundo e o terceiro álbum, mas foi este “Número 1” que a minha mãe
colocou a tocar, enquanto nos dizia adeus à janela, a caminho da nossa primeira tournée
pelo país, orgulhosa pelos filhos do bairro!
PS: deixo-vos só com mais uma Palavra, para que não nos esqueçamos de onde
começámos, um dia destes vamos dar um concerto num palco montado aqui na rua. E
outro na outra margem do campo. E já convidámos o mestre da rima. E tu também estás
convidad@! Porque podem tirar uma letra a uma palavra, mas não tiram uma palavra a
uma letra! Palavra Palavrinha ♫
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